Boletim Futuro do Cuidado #13
Editorial
O Boletim Futuro do Cuidado vai mudar. O olhar atento, característico deste veículo, será mantido no novo formato que vem por aí. Mas o tempo de resistência multifocal nos exige otimização de recursos e agilidade, sem perder a conexão e o compromisso com vocês, nosso público.
As sete primeiras edições do boletim, entre agosto de 2020 e novembro de 2021, trataram da Justiça Reprodutiva em Tempos de Pandemia. No Brasil tivemos a combinação perversa da pandemia com o desgoverno fascista, racista e misógino, que impactou severamente a saúde das mulheres e o índice de mortalidade materna. Em 2021, foram 107,53 óbitos maternos a cada 100 mil nascidos vivos (quase três vezes mais do que a meta de redução que o Brasil se comprometeu, perante a ONU, a atingir em 2030). Sofremos com a desestruturação de políticas sociais que já vinham sendo limitadas pelas barreiras de um conservadorismo ganancioso e corrupto e que, nesse período em particular, ganhou um impulso que demoraremos a conter. Conter, para ter de volta políticas de promoção do emprego, de combate à fome, de proteção do meio ambiente, de resgate da estrutura educacional, da cultura, das possibilidades de cuidado. Ter de volta nosso SUS, os ministérios, parlamentares e juízes/as comprometidos/as com a democracia, segue sendo parte da batalha por cidadania, que o Futuro do Cuidado quer pautar, e fortalecer.
O que a crise sanitária e política nos trouxe? As milhares de mortes por Covid 19 foram determinadas por um gerenciamento que definiu quais pessoas deveriam morrer, ou receber mais agudamente o impacto do isolamento social: povos originários, quilombolas, população negra, povos ribeirinhos, das florestas e das periferias das grandes e médias cidades, populações de baixa renda e baixa escolaridade. Mulheres e meninas sofreram - e sofrem - um abandono que teve como exemplo emblemático o caso da população amazonense, torturada por asfixia pela falta de oxigênio (inclusive bebês em UTIs neonatal). Tivemos que lutar por vacinas para gestantes!
Este período deixou como rastro o aumento da violência doméstica e o retardo na procura dos serviços. A condução estabelecida em termos de política para o aborto teve eficácia em sua misoginia. Conexões internacionais com o que há de mais retrógrado (haja visto o Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família), impulsionaram medidas internas ao Ministério da Saúde e ao (hoje extinto) Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que semearam barreiras. Podemos citar a suspensão de orientações sobre política de atenção e proteção à saúde sexual e reprodutiva; o estabelecimento de orientações promovendo o direito à vida desde a concepção e observando os direitos do nascituro (Decreto 10.531/2020) ou abordagens discriminatórias sobre anticoncepção com portarias e barreiras de acesso ao misoprostol e às melhores técnicas para a interrupção da gestação. Parlamentares se assanharam no afã de apresentar propostas legislativas retrógradas.
Mas, em meio à tragédia humanitária, nosso Boletim registrou com alegria a saga da bem sucedida implementação do primeiro serviço de atenção ao aborto previsto em lei por teleatendimento, pelo Nuavidas, de Uberlândia; o périplo da menina do Espírito Santo que precisou ir para outro estado onde conseguiu interromper uma gravidez por estupro, no comprometido serviço do CISAM (Recife/ PE); e avanços na Argentina e Colômbia. Divulgar o grito #GravidezForçadaÉTortura - que chegou a ser um dos assuntos mais comentados do Twitter – assim como dossiês, estudos, pesquisas, poesias e dicas para a autodefesa feminista, fizeram o contraponto de nosso veículo, escancarando a perversidade da retirada de direitos, que empurrou mais pessoas para o abortamento clandestino.
Denunciamos o racismo estrutural, clamamos pela proteção das pessoas em situação de violência doméstica e sexual assumindo, nesse percurso, o compromisso com a pauta da visibilidade trans e com as demandas de mulheres (cis e) trans, homens trans e todas as pessoas que gestam, assim como a denúncia da violência política contra defensoras de direitos humanos e parlamentares, em especial negras, e a denúncia da violência contra a população LGBTQIA+. Foi preciso defender o Portal Catarinas, que sofreu ataque virtual por 72 horas. A partir do Boletim #7 começamos a usar os recursos de acessibilidade, com a assessoria de parceiras do Coletivo Feminista de Mulheres com Deficiência Helen Keller.
Veio o ano de 2022 e o Boletim #8, em março, adotou novo prisma com o subtítulo “Justiça Reprodutiva em Tempos de Eleições”. Deixamos claro que não nos silenciaríamos, ao mirar o tabuleiro dos acordos políticos, diante da determinação em subestimar nossa pauta, inegociável: “O acesso universal ao aborto seguro sempre foi, para nós, uma prioridade”.
Uma pesquisa mostrou o desencanto das meninas no Brasil: quase 90% percebiam o contexto de insegurança e vulnerabilidade a que são expostas. Por óbvio, esta situação está marcada pelo desinvestimento e demolição de políticas públicas traçadas para a garantia de seus direitos, a começar pela educação formal. Catástrofes e a emergência climática entravam no radar denunciando políticas que desconsideram o futuro, com consequências mortais que recaem sobre lugares e populações desassistidas. Atos de violência institucional vinham ocorrendo em comunidades e contra populações sem meios de defesa, enquanto a inflação e o desemprego mostravam sua capacidade de tornar a vida insustentável.
O Ministério da Saúde, cuja gestão vivia seus estertores, não perdeu agressividade no ataque à qualidade da assistência obstétrica, desmontando a estratégia Rede Cegonha, que já não considerava a melhoria de qualidade na atenção ao aborto, e editando uma nova Caderneta da Gestante, iniciativas que recolocam o poder médico acima da dignidade das pessoas que gestam, na contramão do novo Guia sobre Aborto lançado pela OMS, que atualiza boas práticas e recomenda a descriminalização do aborto em nome da saúde e vida de mulheres e meninas. As abordagens oficiais retrógradas estavam por detrás do agravamento de algo que já ocorria e que já mencionamos aqui: o não cumprimento de metas com as quais o Brasil se comprometeu, de redução da mortalidade materna.
Enquanto estupros de meninas e mulheres aconteciam à base de 144 por dia, na Câmara Federal parlamentares apoiadores do desgoverno tentaram dar andamento à tramitação do Estatuto do Nascituro. Não conseguiram, por força da pressão feminista e, por certo, da opinião pública brasileira, apontada como majoritariamente favorável a manter a lei conforme se encontra ou a ampliar os permissivos legais ao aborto por escolha, que esse estatuto pretende extinguir. Enquanto o México deu mais um passo à frente, com a descriminalização do aborto no estado de Guerrero, mulheres e meninas nicaraguenses sofriam, e sofrem, sob o regime ditatorial de Ortega e Murillo. No Brasil, os casos das meninas de Santa Catarina e do Piauí mostraram como as estratégias de garantia de direitos já não funcionavam, diante da ação orquestrada antiabortista, com a conivência de profissionais da área médica e jurídica. Estão querendo normalizar a gravidez na infância e adolescência.
A pauta mínima que apresentamos ao governo eleito em 2022 abarcou esse leque de questões e a utopia de reverter o quadro de catástrofe social. Estava clara para nós, a dificuldade intrínseca à natureza das alianças feitas para lograr eleger-se e manter a governabilidade. Mas, ao menos como primeira providência, o novo governo se retirou do Consenso de Genebra. Foi um passo importante.
Em julho de 2023 adotamos para o Boletim o subtítulo “Justiça Reprodutiva em Tempos de Retomada Democrática”. Ministérios, aqui e ali, se empenharam em arrumar a casa destroçada. No Judiciário, o ano de 2023 terminou sob a influência do histórico voto da Ministra Rosa Weber, do STF, favorável à ADPF 442, um ponto de honra da nossa agenda hoje sob a responsabilidade do novo presidente da casa, Luís Roberto Barroso. Terminou também com o desencanto de testemunhar a indicação presidencial de um ministro conservador, ao arrepio do “clamor por uma mulher negra no STF e por uma ministra sensível à pauta da justiça reprodutiva e de gênero”, e de um super católico da Opus Dei, para a Procuradoria Geral da República.
Mais desencanto com a eleição de Milei, na Argentina. Nacionalmente, o caso da adolescente em Teresina (PI) foi dramático, mas culminou com o judiciário emanando sinais de humanidade para apontar o dedo contra a atuação enviesada do operadores/as do direito que atuaram em defesa do embrião, para impedir a interrupção da gravidez de uma menina estuprada.
Nossa Onda Verde atravessa desafios, se recompõe nacional e regionalmente para unir forças contra uma oposição que também se fortalece. É tempo de mudanças e de buscar agilidade e eficácia na comunicação. O Boletim vai virar newsletter (o nome em inglês para se referir a um tipo de e-mail informativo disparado com maior frequência).
Se vamos sentir falta de aprofundar conteúdos, esta é uma lacuna que poderá ser coberta com artigos que nossas organizações estarão prontas para produzir. Seguimos na luta, apoiadas em bases científicas e posicionadas de modo radical sob a perspectiva de gênero, decolonial, antiracista, antiLGBTQIAP+fóbica e anticapacitista, atentas e em diálogo com o público e, sempre que possível, com os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Às portas de uma desafiadora eleição municipal, nosso trabalho é por conter o avanço do ultraconservadorismo, firmes na luta por Justiça Reprodutiva.
Muito além de reivindicar a autonomia dos corpos e o direito de decidir das mulheres e pessoas que gestam, lutamos por dignidade e justiça.
Comissão Editorial do Boletim Futuro do Cuidado:
Anis/ Campanha Nem Presa Nem Morta/ Cepia/ Cfemea/ Coletivo Margarida Alves/ Grupo Curumim/ Portal Catarinas/ Rede Feminista de Saúde