BOLETIM FUTURO DO CUIDADO #17
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Tempo médio de leitura: 17 minutos
Quando falamos sobre infância, o que você pensa? Escola, brincadeiras, aprendizado, crescimento, diversão podem ser algumas das palavras que vêm à mente. Mas, para muita gente no Brasil, as atividades associadas à infância são outras: gestar, parir, cuidar, maternar. Parece, e é, absurdo, mas também é real. Um grande grupo de pessoas, muitas delas em posição de poder, acham que criança deve sim ser mãe.
Se há poucos anos nós estávamos lutando para avançar os direitos reprodutivos no Brasil, desde o ano passado, temos nos mobilizado para evitar retrocessos e garantir o direito à infância das crianças brasileiras. No último boletim falamos sobre as mobilizações da campanha Criança Não é Mãe contra os PLs que buscam acabar com o direito ao aborto legal no país. E, desde dezembro, muito aconteceu.
A Resolução ‘Criança Não É Mãe’
No dia 23 de dezembro de 2024, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) aprovou uma Resolução com instruções para garantir os direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
O documento foi elaborado e trabalhado ao longo de meses e em diálogo com a sociedade civil, para responder a um problema urgente. No Brasil, um estupro acontece a cada 6 minutos e 63% das vítimas são crianças com menos de 13 anos, sendo 7 a cada 10 crianças negras, de acordo com dados do Fórum de Segurança Brasileira.
Não bastasse essa violência, as crianças que engravidam em decorrência dela não conseguem acessar seus direitos. Legalmente, todas poderiam interromper a gestação, mas a maioria não consegue: nos últimos 10 anos, 232 mil crianças de até 14 anos tiveram filhos em nosso país. Por que não tiveram seu direito garantido?
A Resolução nº 258/ 2024 traz resposta a essa questão através de medidas para reduzir números tão preocupantes, como a qualificação do atendimento por parte de profissionais de saúde e dos conselhos tutelares, que atuam diretamente com este público. Daí veio o nome: Resolução ‘Criança Não É Mãe’.
É óbvia a legitimidade de uma resolução que tenta garantir a crianças o direito de viver plenamente sua infância, mas mesmo assim a votação do texto, no Conselho, foi cheia de desafios. E a resistência veio inclusive do Governo Federal, que não apoiou a resolução. Mas, graças ao grupo de representantes da sociedade civil, o texto foi aprovado.
A psicóloga Marina de Pol Poniwas, representante do Conselho Federal de Psicologia, presidia o órgão durante todo esse processo. Em artigo especial para o Futuro do Cuidado, ela conta como se deu a redação e aprovação desse importante documento, explica as competências do CONANDA e ressalta o dever da sociedade brasileira em proteger e cuidar de nossas crianças.
Tentativas de derrubar a Resolução
Já no dia seguinte à aprovação da Resolução 258, a senadora Damares Alves (Republicanos - DF) entrou com uma ação judicial e conseguiu sua suspensão. Somente no dia 8 de janeiro de 2025 a decisão foi revogada e o governo publicou a Resolução.
Mas, desde então, outras tentativas de revogação seguem aparecendo em diversas esferas. Duas outras ações foram movidas na justiça, e foram muitos os ataques que partiram do Congresso Nacional. Atualmente, há 13 Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) tentando derrubar a resolução, 10 na Câmara e 3 no Senado. Diversas propostas legislativas e ações vêm surgindo em outras esferas, nos níveis locais, e há também uma grande campanha de desinformação. Por isso, a campanha Criança Não é Mãe preparou um documento com as principais perguntas e respostas sobre o assunto.
Maternidade não é coisa de criança
A campanha Criança Não é Mãe, formada por uma articulação de diversas organizações da sociedade civil, tem participado ativamente de tudo isso. O objetivo é simples: garantir que mais crianças vítimas de violência sejam amparadas.
Organizações da iniciativa realizaram uma série de ações em Brasília (DF), entre 20 e 23 de maio, durante a Semana Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Na ocasião foi lançado o vídeo “Maternidade não é coisa de criança”, com narração da atriz Alice Carvalho.
O pré-lançamento do vídeo aconteceu no Simpósio Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, promovido pelo movimento Faça Bonito, que reuniu especialistas, ativistas, parlamentares e gestores públicos em defesa dos direitos das crianças para atualizar o Plano Nacional de Enfrentamento, e articular a contenção de retrocessos como o PL do Estupro e a PEC 164/2012, reafirmando a importância do acesso ao aborto legal. Foram dias em que a campanha Criança Não É Mãe e o movimento Faça Bonito estreitaram laços, somando vozes na luta contra a imposição da maternidade forçada a meninas. Saiba mais na reportagem do Portal Catarinas.
Apesar dos ataques, a Resolução 258/2024 segue firme. Mas não queremos apenas que ela siga vigente: é essencial que seja conhecida e aplicada, impactando positivamente as vidas das crianças e adolescentes brasileiras. E como afirma Marina de Pol Poniwas em seu artigo: “Implementar a Resolução nº 258/2024 é reconhecer que nenhuma política pública é neutra — e que a omissão, quando se trata da dor de uma criança, também é violência. Escolher proteger é escolher agir”.
O que mais tem rolado?
No Brasil
Ações no STF: Justiça reprodutiva também está em debate no Supremo Tribunal Federal. Atualmente, são quatro ações para acompanhar:
ADPF 1207: protocolada em fevereiro de 2025, busca a ampliação do cuidado ao aborto no Brasil, possibilitando que profissionais não-médicos, como enfermeiras, ou as próprias mulheres realizem o procedimento, eliminando barreiras de acesso para meninas e mulheres mais vulneráveis. Com relatoria do ministro Luiz Edson Fachin, ela ainda está em estágio inicial, aguardando informações da Presidência, Senado e Câmara. Enquanto não avança, vale olhar esse material explicando porque enfermeiras deveriam, sim, poder realizar o aborto.
ADPF 442: pede a descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação e foi protocolada em 2017. A ação recebeu voto favorável da Ministra Rosa Weber antes de sua aposentadoria, em 2023. Logo em seguida, o Ministro Luís Roberto Barroso pediu destaque e a ação não tem previsão de voltar à pauta. Esta reportagem explica tudo que a ação envolve.
ADPF 1141: questiona a atuação do Conselho Federal de Medicina (CFM) na restrição ilegal do aborto no Brasil, e pede especificamente a suspensão da Resolução CFM 2.378/2024 que proibia a assistolia fetal. A ação ainda aguarda julgamento, mas em 2024, o relator, Ministro Alexandre de Moraes, suspendeu liminarmente a resolução. Com isso, também foram suspensos processos administrativos contra médicos/as já instaurados com base nela e foi proibida a abertura de qualquer novo processo. O Ministro também vedou a entrega, sem justa causa, de prontuários médicos de pacientes que realizaram aborto legal aos conselhos de medicina.
ADPF 989: protocolada em 2022, a ação pede que se assegure a realização do aborto nos casos já previstos em lei e em casos de anencefalia fetal, além de demandar que sejam impedidas ações de qualquer órgão do Estado no sentido de dificultar ou impedir o acesso ao aborto legal. Ela também aguarda julgamento, sem previsão de quando pode acontecer.
Como tem sido o debate online? Não há dúvida de que o aborto foi um dos grandes temas do debate público em 2024, principalmente por causa do projeto de lei 1904/ 2024, que visa restringir o direito ao aborto legal. O Netlab, da UFRJ, a pedido das organizações responsáveis por esse boletim, realizou uma análise das publicações que mencionam aborto ou tratam do PL 1904/2024, em diferentes plataformas digitais, ao longo de 2024. O relatório “Proteger nossas crianças" identifica as principais personagens e narrativas associadas à discussão em 2024 e analisa a publicidade sobre aborto nas plataformas da Meta. O relatório completo está disponível aqui.
Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. Entre 29 de setembro e 1º de outubro, Brasília vai sediar a 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (5ª CNPM). Com o tema "Mais Democracia, Mais Igualdade, Mais Conquistas para Todas", a Conferência será um espaço de diálogo entre movimentos sociais, entidades e organizações da sociedade civil e o governo sobre as políticas de gênero no país. Antes da etapa nacional, acontecem as conferências livres, as municipais, as regionais e as estaduais. No site do evento, você pode conferir o calendário, os regulamentos e saber como participar.
Reforma do Código Civil. Em janeiro, o senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG) apresentou o PL nº 4/2025 para atualizar o Código Civil de 2002. Embora ainda sem avanço no Congresso, o projeto gerou debates, especialmente em temas ligados à reprodução. Um deles é o tratamento do nascituro: o texto mantém a redação atual, mas inclui “para os fins deste Código”, expressão que limita sua proteção ao campo civil, evitando seu uso contra a descriminalização do aborto na esfera penal. O projeto também propõe regular a reprodução assistida e a “gestação de substituição”, proibindo fins comerciais e exigindo consentimento informado das partes. Apesar disso, analistas avaliam que há poucas chances de a proposta avançar.
Quer saber como a imprensa tem abordado o tema do aborto? O Futuro do Cuidado faz um clipping mensal do que sai sobre o assunto nos principais veículos do país. E ele fica disponível para consulta.
No mundo
Trump dá o tom de seu segundo mandato. Donald Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos e os impactos de suas políticas já podem ser sentidas para além das fronteiras do país. Uma das primeiras medidas do presidente foi o congelamento de apoios financeiros da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAid), seguido do fechamento da agência. Com isso, milhares de projetos de ajuda humanitária, direitos humanos e respostas à crise climática foram impactados ao redor do planeta. Além disso, os ataques do presidente aos direitos reprodutivos levaram uma parte da filantropia a redirecionar recursos para projetos dentro do país, diminuindo ainda mais o financiamento a iniciativas em outros países. O impacto em ações por justiça reprodutiva por aqui ainda precisa ser mensurado, mas o nível de preocupação é alto.
Conferências da ONU - CSW. O ano já começou com duas conferências da ONU, ambas em Nova York. Em março, aconteceu a sessão da Comissão sobre a Condição da Mulher (CSW), com presença de comitiva brasileira e da então Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves. Representantes das organizações que atuam por justiça reprodutiva presentes no evento avaliaram que o Brasil não tomou posições firmes e que, devido à forte tensão política em diversos países, poucos avanços concretos foram atingidos nas negociações.
Conferências da ONU - CPD. Em abril, aconteceu mais uma sessão da Comissão sobre População e Desenvolvimento (CPD). O tema central dos debates foi Saúde e as negociações foram travadas por obstruções dos Estados Unidos e da Argentina, que demonstraram resistência com o tema dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Conferência terminou sem a aprovação de uma resolução final, mas à exceção desses dois países e do Irã, a grande maioria dos países presentes defenderam veementemente os Direitos Sexuais e Reprodutivos, incluindo temas como educação sexual e reprodutiva . Para visibilizar os desafios no Brasil, a campanha Criança Não é Mãe esteve presente e realizou o evento paralelo “Construindo um Futuro Digno para Meninas: enfrentando a violência sexual e a gravidez forçada no Brasil” que debateu o panorama da gravidez na infância e adolescência.
Cultura Aborteira
O tema do aborto tem ganhado espaço na cena literária brasileira. Neste ano, foi lançado o livro de poesias Gesto de gravidade (Editora Minimalismos, 2025), de Anna Luara da Silveira, que acompanha as fases de um processo abortivo desde a tomada de decisão até o momento final. O livro se aprofunda em temas que margeiam o aborto, como a maternidade, a corporeidade, a experiência hospitalar, o trauma que se materializa no cotidiano e a recuperação.
A convite da equipe do Boletim, Anna Luara preparou uma lista de outras obras nacionais que abordam o assunto:
-O poema Uma volta pela lagoa, de Juliana Krapp (Círculo de Poemas, 2023), faz um mergulho nos pensamentos de alguém que tomou a decisão de fazer um aborto. O eu-lírico percorre sentimentos, inquietudes e silêncios que precedem o procedimento. O poema ficou em segundo lugar na categoria Poesia do Prêmio Alphonsus de Guimaraens.
-Conceição Evaristo discute a precariedade da gestação e da maternidade para mulheres marginalizadas no conto Quantos filhos Natalina teve, no livro Olhos D’Água (Editora Pallas, 2014). Ela nos mostra a dureza de uma realidade que muitos não querem ver, ao lançar um olhar profundo sobre os pensamentos da personagem. Também em sua coletânea Poemas da recordação e outros movimentos (Malê Editora, 2017), Evaristo trata não apenas do aborto, mas também da violência sexual que vitima meninas cotidianamente, no poema A menina e a pipa-borboleta.
-Biancha Chioma fala daquela mulher que, ao longo da história, sempre correu e ainda corre muitos riscos ao tentar ajudar outras. Às vezes parteira, outras aborteira, a figura da mulher que carrega conhecimentos sobre o corpo e a reprodução humana sempre foi perseguida. Em seu poema [a lenda], ela nos fala sobre abortos clandestinos, moralismos e morte.
Palavras-chave: aborto, #CriançaNãoéMãe, maternidade, infância, CONANDA, violência sexual, direitos da criança e do adolescente.
Expediente:
Comissão Editorial e Edição – Paula Viana (Grupo Curumim); Nara Menezes (Anis - Instituto de Bioética); Kelly Ribeiro (Portal Catarinas); Leina Peres (Rede Feminista de Saúde); Mariana Prandini Assis (Coletivo Margarida Alves); Karla Oldane (Cepia)
Coordenação Editorial - Angela Freitas (NPNM)
Redação - Helena Bertho (NPNM)
Arte - Isabella Nascimento (Anis - Instituto de Bioética)
Clipping - Isadora Sento-Sé
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